Preta e eu dividimos uma vida há 16 anos. Quando nos conhecemos, ela tinha um mês de idade. Sua mãe foi resgatada prenha da rua e teve os 6 filhotes no abrigo. Ela não passava de uma cachorrinha minúscula que cabia no meu antebraço.
Todo esse tempo depois, Preta segue aqui comigo. Nos últimos 3 ou 4 anos, eu pensei muitas vezes em como seria quando ela morresse. Amaldiçoei o descompasso do tempo de vida entre humanos e cachorros em todas elas, e em todas elas me senti ridículo. Aprendo na prática, faz alguns anos, que a morte faz parte da vida, não a encerra. Preta um dia se vai, como minhas avós, meus avôs, meu pai, um punhado de outros cachorros com quem convivi e outro punhado (maior do que deveria) de amigos. Perdi todos eles, mas seguem todos por aqui.
Em 2021, eu achei que a vez da Preta tinha chegado: um câncer na pata, grudado no “cotovelo”, foi diagnosticado. Ela já tinha 14 anos, e a cirurgia, por mais que a veterinária dissesse o contrário pra me acalmar, tinha riscos. No dia da operação eu fiquei tenso a ponto de ranger os dentes sozinho na rua. No final, deu tudo certo: tumor removido, nenhuma metástase constatada. Fomos pra casa, ela e eu, encontrar com o resto do bando — uma humana e uma gatinha. Hoje, a turma cresceu: mais um gato e outra cachorra.
No ano seguinte, levamos a Preta pela primeira vez à praia. Deu trabalho, mas valeu a pena vê-la correr pela areia, mesmo que a energia não fosse mais igual a daquela filhotinha destruidora de sofás e colchões. Com 15 anos, Preta não curtiu tanto nadar no mar quanto, imagino eu, teria curtido 10 anos antes.
Este ano, pouco depois de chegar aos 16, percebemos que ela estava com dificuldade pra mijar. Preta sempre mijou “igual macho”, levantando a patinha, e agora agachava com dificuldade pra fazer o xixi em pequenas parcelas, algumas vezes apenas gotas. Voltamos ao veterinário.
Depois de alguns exames e uma visita à nefrologista, o diagnóstico: câncer outra vez. Agora na bexiga. Com metástase no pulmão.
Corremos para a oncologista.
Nos últimos 20 dias, Preta foi sondada, examinada, fez quimioterapia, viu a imunidade chegar quase no chão, teve anemia, diarreia, infecção urinária e passou por 3 internações. Saiu da última ontem.
Na penúltima, um novo ultrassom indicou: a quimio ajudou pouco. O câncer chegou ao fígado. Ela está mijando bem melhor, mas o quadro clínico geral está cada vez mais rebaixado.
Trouxe Preta pra casa no colo há 16 anos. Levo e trago ela no colo ao veterinário nos últimos dias. Seu olhar, sempre alerta e profundo, que tantas vezes me fez sentir um vínculo impossível de traduzir em palavras, às vezes se perde, se volta para o nada. A bexiga não aguenta mais segurar, e o xixi sai aqui e ali, na sala, no quarto, na cozinha. Tem dias em que a comida não desce, e ela mal sai da caminha.
Observo essas mudanças todas dia a dia. Difícil um deles, no último mês, em que eu não tenha chorado. Na rua, na cama, no metrô, em qualquer lugar. Preta se despede da pior forma possível, uma lenta, dolorida e cheia de incômodos, expressos por olhares e lambidas cada vez mais cansados. Outro dia chorei pensando em um dia hipotético em que não vou mais lembrar do olhar dela, do cheiro, do peso no meu colo arregaçando a lombar no caminho até o veterinário. Besteira. Lembro do cheiro do meu pai até hoje.
A morte não encerra a vida, mas o seu prenúncio muda tudo. Deito de noite e não durmo direito. Espero os passos dela pelo quarto, em direção às escadas. Levanto sempre que os ouço, pra evitar uma queda acidental. Na última noite, resolvemos fazer uma barreira. Melhor recolher a merda e limpar o mijo no corredor do banheiro do que correr o risco. A tabela de remédios ocupa muitas horas do dia, as visitas à veterinária, os exames, vários dias da semana. As toalhas de papel, o rodo e o desinfetante estão sempre ao alcance pra limpar mais um xixi. Parece ruim, mas, de uma forma inexplicável, eu sei que vou sentir falta de lavar a capa do sofá pela terceira vez na semana quando tudo chegar ao fim. A palavra cuidado tem muito mais que 7 letras.
Hoje me desejaram melhoras para a Preta. Sem pensar, eu respondi que não tem melhora mais, agora é tentar promover o maior bem-estar possível. As lágrimas vieram quase na mesma hora, dessa vez acompanhadas da ficha terminando de cair. E eu percebi que, como em tantas outras vezes na vida, precisava escrever. Antes do fim, quero estar com a Preta o maior tempo possível. E, de tempos em tempos, refletir sobre a nossa convivência, os anos compartilhados, as intimidades.
Não sei dizer o estado das palavras que virão nos próximos dias. Entendo se elas forem incômodas pra você, a ponto de decidir não ler mais. Não tenha pudores também em me responder, seja pra me mandar à merda ou pra compartilhar sentimentos em comum. Esta newsletter não tem grandes ambições. Nem periodicidade definida.
Antes do fim não oferece nenhuma grande certeza.
Nem mesmo o fim.
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Danilo, me acabei de chorar com seu texto. O nosso Balt tem 12 anos e está saudável, mas eu penso muito em como o tempo com ele já está contado. Desejo muito amor pra vocês nesse momento e que vocês consigam aproveitar cada segundo.
Olá Danilo querido, não nos conhecemos mas a gente chora junto. Aqui estamos vivendo algo parecido. Que alegria (de verdade uma alegria alegre, já que também triste), você poder escrever sobre sua Preta. Um dia alguém me disse que ser capaz dessa inteireza (quebrada) diante do sofrimento é o que poderíamos chamar de uma atitude plena diante da vida. Nada a ver com a felicidade das margarinas. Obrigada por nos lembrar que a palavra cuidado tem mais do que 7 letras. beijos em você e nos seus