Do alto da escada rolante, vi as portas do trem abertas. Apressei o passo e cheguei até a plataforma pouco antes do sinal sonoro soar. Comecei uma corrida tímida pra tentar alcançar o vagão antes do fechamento quando me lembrei de Lourivaldo.
Maio é, historicamente, o mês do trabalhador. Não do trabalho. O trabalho não merece um dia, muito menos um mês. Ele já tem muito mais que isso: a nossa vida, a nossa dignidade, o nosso esforço. A nossa morte.
Parei em frente às portas de acrílico, que não existiam anos atrás, e observei o trem correr. Uma vez mais, pensei em Lourivaldo. Em seguida, pensei no que fazer se um dia acontecer comigo. Como escapar. Em segundos, percebi o tamanho do absurdo desse pensamento e fui tomado pelas piores imagens possíveis capazes de serem criadas por uma mente cheia de anos no transporte público e, nos últimos dias, imagens de Lourivaldo.
A era da obscenidade das imagens, não num sentido pudico, mas naquele em que as sobreposições visuais são constantes e cada vez mais rápidas, nos obriga a ver até mesmo o que não foi filmado. Colocar as mãos na cabeça junto com as pessoas que, do outro lado da tela, se desesperaram com Lourivaldo. Enxugar as lágrimas junto com os cartazes levantados por tantas e tantos outros lourivaldos que, indignados, cobram a empresa privada responsável por sua morte, e o governo cúmplice.
Já prendi blusas na porta do trem. Bolsas, sacolas. Nunca uma parte do corpo. Em todas as vezes, outras pessoas empurraram o trem para obrigá-lo a devolver meus pertences. Quem trabalha costuma ser solidário com o próximo, salvas exceções que não merecem mais palavras que estas.
Ninguém pôde ajudar Lourivaldo.
Entre o trem e a parede de acrílico, mal instalada e sem o sensor de presença, Lourivaldo ficou. Eu não o conhecia, sequer sabia de sua existência. Não sei de nenhum outro Lourivaldo. Agora, seu rosto estampado nos cartazes e seu desespero impregnado no fundo do meu cérebro me acompanham o tempo todo.
Lourivaldo Ferreira Silva Nepomuceno tinha 35 anos. Era ajudante de pedreiro, estudante e professor. Tinha esposa e três filhos. Faria aniversário no próximo domingo, dia das mães.
Com ódio e tristeza, e sabendo que nenhuma destas palavras tem qualquer poder restaurativo, estendo a eles meu coração.
Por que corremos pra pegar o trem ou o ônibus?
Há várias respostas para essa pergunta, muito repetidas nas redes sociais. Não vou recorrer a nenhuma delas. Me recuso a responder quem, conscientemente ou não, insiste em jogar a culpa para o nosso lado. No lugar disso, faço eu outra pergunta:
por que parece aceitável morrer em nome do trabalho?
Ou melhor: por que nós morremos para ir trabalhar? Ou, como dizia o nome da banda de uma amiga querida,
por que aceitamos trabalhar para morrer?
Ontem, voltando da escola, consegui um lugar na van que é o segundo veículo necessário para completar meu trajeto trabalho-casa. Já corri atrás dessa van algumas vezes. Houve aquelas em que a alcancei, com ou sem a ajuda de outro passageiro. Outras em que não. Não corri riscos de esmagamento - aqui e ali, de atropelamento. Alguns pontos depois, duas mulheres estacionaram, de pé, ao meu lado.
- O melhor é pagar aquele plano do banco, sabe? Porque a gente nunca sabe a hora. Minha mãe mesmo, achamos que ela ia primeiro, aí o filho dela morreu antes e tivemos que usar o jazigo que ela tinha comprado.
- Mas ele morreu muito jovem?
- Dezenove anos, amiga.
- Nossa! E morreu como?
- Ah, foi procurar o que não fazer.
- Como assim?
- Foi roubar. E nesse meio, se você não tem coragem de matar, vai morrer. Ele foi roubar um policial, não teve coragem de matar...
- Meu deus!
Desci pouco depois. Na cabeça, dividindo espaço com Lourivaldo, o diálogo se misturava com outra notícia envolvendo polícia, tiro e metrô. O homem baleado não morreu. Tudo aconteceu no meio da tarde. A estação estava cheia.
Ainda que eu ande pelo vale da sombra da morte,
não temerei mal algum.
Nunca tive uma religião. Apesar disso, esse trecho de um salmo que eu desconheço resolveu viver na minha memória desde a adolescência.
Depois de uma vida inteira pagando caro para circular pela cidade em veículos precários geridos por canalhas que não precisam utilizá-los, nunca o vale da morte me pareceu tão próximo quanto nessa rima não intencional e triste que o termo faz com vale-transporte.
Meus projetos
Antes do fim…
…de semana: se você está em SP, visite a Feira Nacional da Reforma Agrária, no Parque da Água Branca, que vai até domingo, 11/05.
…da vida: leia a newsletter da Paula Maria, te escrevo cartas. Coisas bonitas, do cotidiano e que te fazem pensar no seu.
…do mundo: visite o Mirante da Pedra, no Parque Estadual Cantareira, zona norte de São Paulo. Meu próximo romance será ambientado lá.
Antes do fim se propõe a ser um espaço de debate. Então, se qualquer trecho desta edição te deixou com vontade de falar alguma coisa, é só responder este email ou comentar na página, caso você esteja lendo direto no Substack.
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Até a próxima edição!
Seu texto vai no ponto. Morar em sp me fez mudar ainda mais a noção de trabalho e trabalhador. Um lugar que te obriga, te convoca, te espreme. Ao trabalhador, tudo. Aos senhores, nada. Tenho repetido como mantra, esperando por dias melhores. Obrigada pela menção, Danilo! ♥️