Reinício
Reflexões sobre o processo de (re)abrir a porta para as coisas que descartamos no passado
(Esta edição faz parte do Newsletteraço 2024, um movimento coletivo de newsletters. Conheça todas as participantes.)
Eu nunca fui emo.
Quando o emo se espalhou pelos centros urbanos brasileiros, eu vivia o auge da minha identidade punk. Uma vida punk. Renegava o samba e o pagode. Desprezava o carnaval. Ignorava (até onde conseguia) o futebol. E não chegava a odiar os adolescentes (como se eu fosse muito mais que isso) coloridos, mas olhava para eles com condescendência. O emo era bobo. Infantil. Inofensivo. Pior: o emo era uma corrupção do “verdadeiro” emo, surgido no começo dos anos 1980 nos EUA, esse sim digno de nota e validação, já que uma expressão do punk — há, como sempre, controvérsias. O mais perto do emo do século XXI que eu me permitia chegar era o CPM22 — ainda assim, só porque tinha conhecido a banda antes da onda emo, quando aquele tipo de som era considerado hardcore melódico.
Não lembro onde eu li ou vi que muitas das decisões definitivas que tomamos na vida — não gosto de pepino, odeio acampar — são tomadas quando ainda somos muito novos, e baseadas em uma ou poucas experiências ruins. A partir daí, passamos anos e décadas sem nunca mais experimentar algumas coisas, que descartamos, muitas vezes, sem entender direito. Claro que no caso de pepinos e acampamentos não há muita coisa em jogo, mas e quando estamos falando de algo mais complexo? Um beijo em alguém fora da norma? Questões íntimas das quais temos dúvidas? Experiências que sequer tivemos direito?
Depois que meu pai morreu, 15 anos atrás, eu comecei a tocar em um bloco de carnaval. Meu pai tinha sido diretor de escola de samba, e eu tinha feito questão, na época, de não demonstrar nenhum interesse por isso. Precisei passar por uma perda maior do que o mundo para conseguir dar uma segunda chance ao samba. E amei. Também (re)amei o pagode. E reconquistei o futebol e o carnaval.
Foi como se a vida me desse uma oportunidade de recomeçar essas relações. Me abrisse a porta do reinício.
Esta edição da newsletter é sobre o ato de reiniciar.
Eu me tornei professor quase 20 anos atrás. Comecei pelos cursinhos populares, e neles estou até hoje. Dar aula nunca tinha sido um plano, um sonho ou um desejo. Pelo contrário: era muito mais um medo. Encarar uma sala cheia e ter que demonstrar segurança. Confirmar que sabe. Demorei alguns anos para conseguir dar aula olhando nos olhos da turma.
Muitos anos depois disso, me tornei professor da rede pública municipal de São Paulo. Os anos de cursinho me deram uma vantagem luxuosa: ter coragem para experimentar. Comecei em uma escola onde o copiar da lousa era a regra, e quase ninguém conhecia exceção. Para mim não fazia sentido. Convidei as turmas a escolher o que queriam estudar. Usei os espaços da escola, poucos e mal equipados, como laboratórios: a quadra se tornou deserto. O pátio, savana. O topo do prédio era o alto de uma montanha. A sala cheia de carteiras amontoadas, uma metrópole periférica. As carteiras alinhadas se tornaram a linha de montagem de uma fábrica. E assim criei vínculos, perdi, ganhei, errei e aprendi.
Cinco anos e a pandemia depois e a escola, a terceira dentro da mesma rede, já não era mais a mesma. Eu também não. E antes que eu me tornasse o professor-que-desistiu, figura tradicional em dez de dez escolas públicas do país, eu me tornei um professor que se demitiu. Exonerei meu cargo público e fui para a escola privada trabalhar com formação de professores.
Foi nessa época que esta newsletter surgiu, como uma forma de registrar meus últimos dias com a Preta, minha cachorra de 16 anos. Não deu muito tempo: a vida a levou antes do terceiro post.
O fim chegou antes.
Pouco tempo depois, a escola privada já não me bastava. E eu retornei para a rede pública. Era hora de reiniciar. Mais uma vez. E dessa, eu não seria a exceção: hoje completo meu segundo mês na EMEF Campos Salles, uma escola onde a liberdade foi transformada em regra. Escrevi sobre isso aqui.
Nem por isso foi um reinício suave.
No final do meu primeiro mês, dividimos a turma entre os professores para um trabalho de tutoria. Ser tutor é estar próximo do estudante. Ouvir. Acolher. Como eu fizera antes, no cursinho e nas três escolas públicas anteriores. Refleti sobre esse processo aqui.
Mas alguma coisa da minha passagem anterior tinha se quebrado. Me quebrado. E durante todo o mês de maio não consegui iniciar minha tutoria. Paralisei em algum lugar entre a insegurança, o receio e o medo mesmo.
Semana passada, assumi isso para os colegas. E nesse processo tudo mudou. Tinha medo de ser visto como folgado, como fraco. Fui acolhido.
Nos últimos dias, consegui começar. Devagar. Aos poucos. Como se fosse a primeira vez.
Nunca é. Mas também é.
E logo de cara percebi a necessidade de mais um reinício: preciso voltar para a terapia.







A palavra reinício não é muito usual na oralidade. Falamos mais em recomeço. Mas também não é uma alienígena entre nós: todo adolescente que cresceu nos anos 80 e 90 a conheceu na sua versão em inglês: restart.
Depois do game over, em quase todo jogo de videogame, era ela quem surgia na tela, muitas vezes junto com uma interrogação e um timer. Você perdeu, quer jogar de novo? Não à toa, uma das bandas emo mais conhecidas do Brasil escolheu esse nome para si. Faz todo o sentido: emo e videogame são dimensões de uma mesma juventude urbana.
Eu nunca fui emo. Continuo não sendo. Mas, hoje, canto no karaokê sem vergonha alguma as músicas que conheço — era impossível não conhecer — da época em que não gostava dos coloridos. As letras não têm muito a me dizer, hoje menos ainda, mas com o tempo eu entendi que ser emo era muito mais do que chorar por amores adolescentes não correspondidos: a cultura emo trouxe consigo um debate importante sobre sexualidade, orientação sexual, gênero, expressão, trauma, conflito. Se hoje minhas estudantes brincam que são um trisal ou me pedem conselhos amorosos sem nenhum pudor, é impossível não creditar parte desse processo ao emo — que, claro, transitou à vontade pela internet.
No carnaval deste ano, um dos bloquinhos que curti não era emo, mas quase: os Chorões da Pisadinha pegaram toda a cultura emo (e alguns clássicos do pop e do rock brasileiros), suas músicas e seus símbolos e misturaram com o piseiro, o pagode baiano e, claro, a pisadinha, para dar luz a uma experiência no mínimo curiosa.
Em outras palavras, reiniciaram o Restart. Os shows são maravilhosos.
Não pretendo fazer algo tão singular por aqui, mas se você me leu até este ponto, esteja avisado: chegou a hora de recomeçar.
Meus projetos
Para além da escola e da newsletter, este mês reiniciei também um projeto começado e interrompido na pandemia: O Anarresti, antes um aglomerado de podcasts, agora um canal no YouTube com quatro programas, todos de entrevista.
Bar Kunin discute questões contemporâneas a partir de uma perspectiva anarquista — a primeira convidada no reinício foi a sindicalista pernambucana Leilane Cruz, que falou um pouco sobre a IA e seus impactos na luta dos trabalhadores por emancipação.
Ansível faz uma ponte entre literatura e política, e no primeiro programa conversou com a escritora paulistana Ana Rüsche sobre feminismo e utopias na literatura.
A na Bola é um programa sobre futebol e política, e reiniciou com uma conversa com o Aurélio Araújo e o Carlos Massari, responsáveis pelo perfil Copa Além da Copa nas redes sociais.
Professor/a de Escola Pública é um ex-podcast sobre educação que, na sua primeira edição audiovisual, contou com a professora Sofia Lisboa falando de gênero e cuidado na sala de aula e das atrocidades do Novo Ensino Médio.
Veio aí e vem aí
Veio aí este mês o lançamento do meu livro Da rodoviária para o mundo, lançado pela editora Campo e Bola. Compre clicando aqui.
Vem aí no mês que vem a pré-venda do meu novo livro, Quase agora, uma coletânea de contos que mistura o cotidiano com a ficção científica e suas invenções que não tardam a chegar. A editora será a Folheando.
Antes do fim se propõe a ser um espaço de debate. Então, se qualquer trecho desta edição te deixou com vontade de falar alguma coisa, é só responder este email ou comentar na página, caso você esteja lendo direto no Substack.
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Até a próxima edição!
Sensacional!