Minha família nunca foi disfuncional. Depois de adulto, inclusive, me questionei o que significava ser disfuncional. Ter um pai ausente? Ter a mãe e o pai ausentes? Não ter um dos dois? A ideia de entender a família a partir da sua funcionalidade mascara a ideia conservadora de que existe um tipo certo de família — nuclear.
Minha família também nunca foi atípica. Éramos um pai, uma mãe, uma irmã e eu. Uma tia, um tio, uma prima, um primo, uma avó em São Paulo; três tios, duas tias, cinco primos, uma avó no Rio de Janeiro. Nem grande, nem pequena: uma família média.
Apesar disso, desde cedo minha noção de família foi ampliada pelo modo de viver dos meus pais. Militantes comunistas, ainda clandestinos quando nasci, depois filiados ao PT, meus pais tinham uma porção de amigos que moravam perto (inclusive combinavam de mudar pros mesmos bairros pra continuar perto), faziam coisas junto, se apoiavam, celebravam, assistiam a Copa do Mundo, choravam seus mortos. Melhor dizendo, uma porção de amigas: muito mais mulheres que homens. Entre elas, mães solteiras, mães lésbicas, mulheres que não quiseram ser mães, e sua prole — que sempre foi um pouco a prole de todas elas e dos poucos eles. Minha irmã e eu fizemos parte dessa prole — que hoje em dia já tem a sua própria prole. E sempre soubemos que toda essa gente era nossa família também, muitas vezes mais próxima, mais íntima e mais quentinha que a família de sangue.
Quando eu era pequeno, morria de vontade de ter uma família grande, trocentos primos e a coisa toda. Só depois de adulto eu fui entender que sempre tive.
I. é uma estudante esperta, participativa, protagonista. Lidera sua mesa, lidera o salão todo. Anda e anda pela escola resolvendo coisas, propondo, participando.
Quando comecei na escola, vi em I. um símbolo potente de uma geração com muitos caminhos. Caminhos abertos por anos e anos de luta, do movimento negro, trabalhador, estudantil, de professores.
Caminhos bloqueados e atrapalhados nos últimos anos, mas ainda caminhos, que I. parece conhecer muito bem.
De vez em quando, I. dá uma balançada. Se fecha, se retrai. Os caminhos são cheios de briga pra uma jovem negra da quebrada.
Quase dois meses depois da minha chegada, descobri casualmente que no caso dela, mais ainda.
I. não tem mais pai e mãe.
Perdidos para a violência.
D. nem sempre foi D. Antes, era L. Faz parte do grêmio, pega fácil e rápido tudo que é assunto.
Pré-adolescente, encara momentos difíceis de transição em um corpo em que não cabe.
A mãe e o padrasto apoiam.
O pai não.
Às vezes, D. fica dias sem vir pra escola.
K. tem quatro irmãos. Nenhum deles terminou a escola.
Um, em especial, conheceu a tranca ainda adolescente.
K. sumiu. Quase um mês sem vir pra aula.
Quando convocamos sua mãe, ele veio junto.
Me usei de exemplo na conversa com eles, falando de como não ficou quase nada da escola pra mim. Mas ficou algo. E esse pouco me permitiu abrir portas demais depois dos anos obrigatórios de escola.
— K., eu não sou teu inimigo. Também não sou teu parça. Entendo tua raiva, compartilho dela. Mas tem caminhos que só servem pra destruir a gente. Como professor, conheço alguns outros. Topa conhecer?
Depois dessa conversa, muito mais longa e complexa do que a linha de cima, com outros atores para além da mãe, dele e eu, K. voltou pra escola.
Ainda permanece alheio em boa parte das atividades, hoje dormiu de roncar. Mas está de volta.
E quando nossos olhares se encontram eu vejo muito mais que o vazio de antes.
I. é uma menina quieta. Sempre com as amigas, de braço dado, seu porto seguro.
De vez em quando, I. se fecha.
Dois anos antes, num intervalo, dois meninos tocaram seu corpo.
O uniforme da escola revive esse trauma.
A mãe obriga I. a usá-lo.
Não há diálogo possível.
Ano passado, um dos meus irmãos por extensão desapareceu. Ele sofre de esquizofrenia. Naquele dia, faltei no trabalho para ajudar minha mãe e a mãe dele, que também sempre foi um pouco minha, a procurá-lo.
São Paulo tem 12 milhões de pessoas, 1.523km². Não o encontramos.
A polícia rodoviária sim. Caminhava a pé para Ribeirão Preto, onde mora um dos irmãos. Estava em surto.
No dia em que recebi a notícia de que ele tinha sido encontrado, eu chorei sozinho. De alívio, mas também de impotência.
Racionalmente, eu sei que não há nada que eu pudesse ter feito. Que não é uma questão de falta de ação, ou falta de empatia, de cuidado.
Mas lá dentro alguma coisa sempre quebra quando eu vejo um dos meus, uma das minhas partir. No meio ou para sempre, tanto faz.
Na última quarta, 26, minha mãe completou 73 anos. Estive com ela em mais da metade deles. Nos diplomamos no mesmo dia, ela mãe, eu filho.
O tempo, inexorável, mexeu muito com as nossas famílias, a de sangue e a estendida. Perdemos várias pessoas. Outras mudaram para longe. Ficamos ela e eu, eu e ela, cada um na sua casa se sentindo sozinho. Ela mais que eu, já que construí uma outra família, ou melhor, venho construindo. Não tivemos filhos, mas, assim como meus pais, temos uma prole, filhos e filhas dos amigos que estendemos como família. Não tão próximos como a velha guarda, nem tão numerosos, mas também conscientes de que temos uns aos outros, de que sempre estaremos por aqui. As famílias hoje não são as mesmas de antes, mas também há casais, e trisais, e relacionamentos não monogâmicos de todo tipo. Somos frutos do nosso próprio tempo, afinal.
Apesar disso, há uma coisa que não mudou e, arrisco dizer, não tem como mudar.
No sangue, no corre, no baile, na escola, nas festas e velórios, estamos juntos porque há carinho, e cuidado, e desejo.
Quando não há, não há família: há cativeiro.
Quando eu era adolescente, vivia em conflito comigo mesmo por me declarar anarquista. O discurso era contrário à família nuclear, mas o meu abrigo maior estava nela.
Depois de tudo, de tantos anos (e quantos danos?), eu finalmente consegui resolver essa briga.
O fim da família nuclear não é o fim dos vínculos, do afeto, do porto seguro. Pelo contrário: é sua extensão máxima, é a compreensão de que o sangue não é maior que o carinho, é a construção de várias famílias diferentes ao longo da vida.
O fim da família nuclear é o início da comunidade.
E muitas vezes, como em tantos dos casos que enfrentamos na escola, não é uma opção.
É uma necessidade.
Meus projetos
Na última edição, eu falei d’O Anarresti, o canal de programas que mantenho no YouTube.
Desta vez, vou falar de um outro projeto, mais antigo e mais condizente com o tema desta edição: o Cursinho Popular da Psico-USP.
Autogerido há 15 anos, faço parte dele há 16. O cursinho existe há 26. É, com certeza, o maior exemplo de comunidade que eu experimentei na vida adulta. Pelo cursinho, passaram pais e filhos, irmãos mais velhos e mais novos, gente que foi estudante, depois professora, depois coordenadora.
Sempre precisamos de apoio e de gente. Você dá aula? Vem conhecer. Não dá mas gostou do projeto? Apoia a gente com qualquer trocado por mês.
No Cursinho da Psico, me tornei professor, educador, coordenador e, principalmente, entendi o que significa uma comunidade.
Antes do fim
Encontrei mais um sentido para o título e o propósito desta newsletter.
A partir de agora, as edições regulares vão sair sempre antes do fim do mês.
De vez em quando, pretendo também lançar edições extra.
Em outras palavras:
Antes do fim do mêsAntes do meu fimAntes do nosso fimOu sejaDuranteCaminhoProcesso
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Antes do fim se propõe a ser um espaço de debate. Então, se qualquer trecho desta edição te deixou com vontade de falar alguma coisa, é só responder este email ou comentar na página, caso você esteja lendo direto no Substack.
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E se quiser conversar comigo em outras redes, você tem esta opção, esta outra e o meu email.
Até a próxima edição!
Poxa, bixo, que texto lindo. É o tipo de leitura que eu precisava pra hoje e o tipo de reflexão que tenho tido nos últimos tempos.
quanta delicadeza, nem sei o que dizer. sua família é um amor! <3