Cinco fotos e uma ausência
(ou como transformar memórias de infância em histórias para acalentar o coração)
Ali no fundo do cérebro vivia uma memória. Uma memória de infância. Nela, sentado sobre uma pedra, eu arremessava fora minha última chupeta pouco antes do dedo do meu pai acionar a câmera fotográfica. Não havia telas digitais, apenas um rolo de filme a ser revelado muitas fotos depois, quando as 24 ou 36 poses se esgotassem. Quando revelada, a foto, eu criança sentado sobre a pedra sem chupeta, a foto não fazia ideia de que se tornaria um registro histórico: o momento exato em que eu abandonava a chupeta para sempre. Eu tinha três anos. Meu pai, trinta e seis. Não sei por onde anda a foto. Talvez esteja perdida em algum álbum na casa da minha mãe, ou embaixo da minha cama. Não vou procurá-la agora.
Por que falar dela, então?
Acontece que essa memória, trazida para a frente involuntariamente, essa memória me veio alguns meses atrás quando, visitando a casa da minha mãe, dei de cara com outras três fotos expostas numa cortiça no quarto de hóspedes dela: minha irmã bebê, minha mãe com roupa de formatura, e eu bebê, um pouco menos bebê que a minha irmã. As três fotos são assíncronas: não foram tiradas no mesmo dia, nem no mesmo ano, nem na mesma época. Eu não existia quando minha mãe se formou no colégio. Minha irmã ainda não existia quando tiraram essa foto minha. Nunca estivemos os três juntos como nessa foto. Agora estamos, no mural do quarto de hóspedes da minha mãe, onde antes eu dormia na condição de meio dono do quarto e hoje durmo na condição de filho, quer dizer, de hóspede. De filho hóspede, casual, vez-em-quando.
Essa foto das três fotos hoje vive em uma pasta nomeada “fotos” no meu computador. Há meses eu penso em escrever sobre ela, sem saber como ou quando ou quanto. Só agora, neste fim de mês de abril, com a memória da minha foto sobre a pedra me livrando da chupeta encontrando com a lembrança de ter tirado essa foto das três fotos, é que consegui rascunhar alguma coisa, alguma coisa confusa, truncada e desviante, parecida com um sonho.
As cinco fotos (recapitulando: a minha sobre a pedra, a da minha mãe na formatura do colégio, a da minha irmã bebê, a minha um pouco menos bebê e a foto dessas três últimas fotos) se encontram em uma ausência comum: meu pai. Uma ausência que acontece há dezesseis anos e que todo mês de abril me ronda um pouco mais forte. O tempo passa e parece que as memórias se escondem, se entrincheiram dentro de armários-barricadas que, quando abertos ocasionalmente, despejam um sem-número de sentimentos misturados na nossa corrente sanguínea, que rapidamente atingem o coração e são bombeados para todas as células do corpo. E se transformam em perguntas.
Que roupa meu pai vestia quando tirou a minha foto sobre a pedra?
Usava o black power de antigamente, ou o rabo de cavalo de menos antigamente? Não era o cabelo curto, que esse só veio aparecer nos anos 2000, eu lembro.
Por que resolveu tirar uma foto minha sobre uma pedra no jardim do condomínio onde morávamos, o mesmo onde eu atirava chupetas e mamadeiras do décimo terceiro andar?
Por que minha mãe não incluiu meu pai no mural-das-três-fotos? Por que ela escolheu essas fotos entre tantas nossas?
São perguntas daquelas que fazemos sem esperar resposta, não porque não existam, mas porque não importam muito. As respostas são ausências necessárias, ecos das tantas outras ausências que se interpuseram entre nós, eu, minha mãe, minha irmã e meu pai, nesses dezesseis anos.
Quando eu era criança, sonhava, não no sentido literal, em inventar um aparelho que impedisse a morte. Que eternizasse a vida. Era uma ideia boba, uma ideia de criança. Hoje, mais de três décadas depois, a eternidade se apresenta como uma coleção de fotos e memórias, misturadas como um sonho daqueles que a gente nunca esquece, e se tornam, aqui e ali, novas histórias.
Memória, infância, sonho foi a proposta-tema para o newsletteraço coletivo organizado num grupo de escritores de news do Telegram.
Confira os demais participantes:
Victória escreve a resenhas que ninguém pediu
Paula Maria escreve a te escrevo cartas
Lethycia Dias escreve a Uma mulher que escreve
Leon Nunes escreve a O Substack de Leon
Júnior Bueno escreve a cinco ou seis coisinhas
Lívia Reis escreve a Colcha de Retalhos
Fernando Alves escreve a Futebol no Fim do Mundo
Paula Maria escreve a te escrevo cartas
Cadu Carvalho escreve a Tipo Aquilo
Denise Gals escreve a Aprendiz de Escritora
Karine Canal escreve a Kverso
Patricia escreve a Uma com a Terra
Mia Sodré escreve a Querido Clássico
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Autogerido há 16 anos, faço parte dele há 17. O cursinho existe há 27. É, com certeza, o maior exemplo de comunidade que eu experimentei na vida adulta. Pelo cursinho, passaram pais e filhos, irmãos mais velhos e mais novos, gente que foi estudante, depois professora, depois coordenadora.
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No Cursinho da Psico, me tornei professor, educador, coordenador e, principalmente, entendi o que significa uma comunidade.
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Seu texto me fez rememorar minhas próprias lembranças e as próprias histórias das fotos que estão guardadas nos álbuns da casa da minha mãe. Interessante é que fotos contam histórias, mas também tem suas próprias. Sinto por seu pai, é o tipo de perda que nunca se cura completamente, mas lembrá-lo sempre e com carinho é um forma boa de lidar, eu acho. Seus textos têm sempre algo de nostálgico que gosto muito. Continue a produzí-los!