Querida pessoa que é minha amiga secreta de newsletter este ano,
na vida, às vezes, a gente dá sorte. Esta é uma dessa vezes.
Quando seu nome apareceu para mim no sorteio, a primeira coisa que pensei foi: tá fácil. Interesses em comum, visões de mundo em comum, não vai ser difícil escrever algo para você. De toda forma, fui ler sua newsletter e, para além da proximidade, encontrei uma memória afetiva. Resolvi que esta carta será sobre ela.
Meu pai nasceu no Rio de Janeiro, à época capital do estado da Guanabara e do nosso país. Cresceu na favela da Maré, depois no bairro de Bonsucesso, contando com a mãe, três irmãos (de outros dois pais diferentes) e nenhum pai. Todos eles, menos um que foi viver com o pai logo cedo, torcedores do Fluminense.
Na vida adulta, meu pai perambulou pelo Rio, depois Minas Gerais e finalmente São Paulo, para onde se mudou por conta da minha mãe — que nunca deu muita bola para futebol. Assim, quando eu nasci, a primeira camiseta de futebol que vesti foi a do Flu, sem entender o que isso significava. Antes disso, porém, meus pais fizeram amizade com um casal composto por uma carioca, flamenguista, e o personagem desta história: Wladimir, o Wlado, palmeirense e comunista. Todos eles eram comunistas, aliás.
Como bom carioca e adepto de uma troça, meu pai não precisou de muito tempo para fazer do Wlado uma vítima das brincadeiras. Em 1984, conta meu pai, em uma das muitas confraternizações entre os casais, que moravam no mesmo prédio, a TV soltou uma notícia dizendo que o adversário do Flu na rodada estava preocupado com o ataque carioca — à época, Washington e Assis, o “Casal 20”. Wlado, ouvindo de canto de orelha, desdenhou:
— Ataque? Que ataque?
Meu pai nada respondeu.
Meses depois, com o Fluminense campeão brasileiro, era dia de festa outra vez lá em casa. E foi só o Wlado entrar porta adentro para o hino do tricolor carioca começar na vitrola. Acabou, e tocou de novo. E de novo. E de novo. Até minha mãe dar um basta.
Dois anos depois, em 1986, o Palmeiras na fila, a final do Paulista indicava a possibilidade de redenção, já que o adversário era a até então inexpressiva Internacional de Limeira. A história nos ensina o resultado, e meu pai datilografou uma carta para o Wlado utilizando todos os nomes dos jogadores da Inter como trocadilho.
Trouxe esses dois causos para ilustrar o tamanho da amizade entre os dois, praticamente os únicos homens adultos em um grupo de muitas mulheres — e suas proles. Quando eu fiz 7 anos, meu pai me explicou sobre os times de São Paulo e me deu a liberdade de escolher assistir o jogo no estádio de qualquer um. Fui ver o tricolor paulista, e não gostei. Em seguida, conheci a Fiel, e saí de lá corinthiano e (futuramente) baterista. Meu pai, que já tinha um carinho pelo Corinthians por conta da Democracia, se tornou mais um louco do bando — ainda que nunca tenha abandonado por completo o Flu. Wlado, os três filhos palmeirenses, até tentou me cooptar: fui ao Palestra com eles algumas vezes quando criança, mas meu coração já estava completamente pintado de preto e branco.
Meu pai morreu em 2009, no aniversário da cidade de São Paulo. Naquele dia, o Corinthians ganhou a Copinha. E eu perdi meu melhor amigo. Wlado ficou, e a casa dele, ou melhor, da família dele se tornou ainda mais nossa. Sempre foi difícil ir lá e não encontrar uma multidão de pessoas, tomando café, ou cerveja, jogando buraco, vendo futebol na TV, conversando, ou tudo isso ao mesmo tempo. A casa do Wlado — que nos meus contatos telefônicos sempre esteve como “da Geca”, a esposa flamenguista — existe na minha vida como um exemplo de centro social, afetivo, cultural, político. Sem nunca ter tido que se definir como nada disso.
Foram muitos finais de ano sem meu pai desde 2009. Wlado sempre esteve lá, o palmeirense comunista que me fez nunca conseguir de fato ter raiva do meu rival. Que me ensinou história, me fez entender muito melhor a geração deles, jogou futebol de botão, levou para jogar bola na praia, no clube, discutiu política, literatura, cultura comigo. Dentro da nossa pequena comuna afetiva, Wlado também foi meu pai. E eu nunca pude dizer isso para ele.
Em julho deste ano, Wlado partiu. Inesperadamente. Antes da hora. Sem muitos avisos. E fez todos nós, a prole, parte da qual hoje já com a sua própria prole, um pouco mais órfãos.
Fernando, eu não te conheço pessoalmente, mas lendo sua newsletter — quase dez edições, tamanha a afinidade que eu tive com ela — eu me lembrei do Wlado. E essa lembrança, esse sentimento despertaram aqui dentro um carinho enorme e necessário neste que será meu primeiro fim de ano sem meu outro pai.
Eu não tenho muitos amigos homens. Muitas vezes me questiono sobre isso. Sempre foi mais fácil me conectar com as mulheres. Apesar disso, os dois homens que sempre estiveram aqui me ensinaram coisas inestimáveis. Que é possível caminhar e lutar junto com quem defende outras cores. Que é possível amar, e não de um jeito patriarcal, seus amigos. Que chorar faz parte da vida — nunca esquecerei do Wlado chorando no nosso último ano novo com a dedicatória que escrevi para ele no presente do amigo secreto. Que as mulheres nunca foram deles.
Escrever esta carta, hoje, foi fundamental para mim. Para seguir processando o luto. Explorar um pouco mais a ausência. Despertar as memórias queridas. Por isso, repito o que disse lá no começo: na vida, às vezes, a gente dá sorte. Esta é uma dessa vezes.
Obrigado por ter sido meu amigo secreto!
Que em 2025 a gente possa trocar um pouco mais do que trocamos até agora.
E que seu time tenha sorte inversamente proporcional à minha neste momento.
Não é mau agouro: é respeito. De rival — nunca inimigo.
Abaixo e à esquerda sempre!
Com carinho,
Danilo Heitor
Meus projetos
Neste fim de ano, retomo o pedido de apoio para o Cursinho Popular da Psico-USP.
Autogerido há 15 anos, faço parte dele há 16. O cursinho existe há 26. É, com certeza, o maior exemplo de comunidade que eu experimentei na vida adulta. Pelo cursinho, passaram pais e filhos, irmãos mais velhos e mais novos, gente que foi estudante, depois professora, depois coordenadora.
Sempre precisamos de apoio e de gente. Você dá aula? Vem conhecer. Não dá mas gostou do projeto? Apoia a gente com qualquer trocado por mês.
No Cursinho da Psico, me tornei professor, educador, coordenador e, principalmente, entendi o que significa uma comunidade.
Antes do fim
Para 2025, meu projeto é conseguir de fato retomar esta newsletter.
Não prometo regularidade, mas pretendo que ela saia mais vezes.
Se você gosta da newsletter (ou das coisas que eu faço), considere apoiar o Cursinho da Psico.
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Antes do fim se propõe a ser um espaço de debate. Então, se qualquer trecho desta edição te deixou com vontade de falar alguma coisa, é só responder este email ou comentar na página, caso você esteja lendo direto no Substack.
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Até a próxima edição!
Eu acho tão lindo como você ilustra suas cartas com fotos de pessoas reais da sua vida.
Meu amigo agora não tem secreto Danilo!
Estou arrepiado com a sua cartinha! Que coincidência sensacional que fui sorteado pra você, seja pelo inevitável jogo de palavras dos nomes das nossas newsletters, seja pelo amor ao futebol. Mas principalmente, por te proporcionar grandes lembranças do Wlado.
Na minha carta de amiga secreta para a Paula Maria, falei justamente sobre perda e processo de luto relacionados a perdas que tivemos em 2024. Espero que a memória do Wlado esteja contigo em 2025 e que seja um ano mais leve.
Sempre que precisar de um apoio palestrino e do lado esquerdo da vida, estarei por aqui. Forte abraço!